A Paixão de Madalena
Livro I - A Paixão de Madalena
3. Dois princípios
primordiais seguiu o Criador quando criou tudo e todos. Foi o primeiro ter
tornado todas as coisas e seres distintos de todas as coisas e seres. De tal
forma assim é que estando nós contemplando o mar não dizemos, Olha que belas montanhas o Senhor aqui pôs. E
assim acontece com tudo o que a este mundo veio parar. Não se confundem os cães
com os gatos, não se confundem as águas com as terras, nem as árvores com os
ventos, nem o dia com a noite. Muito trabalho deu isto ao Criador pois que,
para todas as coisas e seres, dos maiores aos mais ínfimos, teve de encontrar
distintivo traço não Lhe cabendo a Ele qualquer responsabilidade pelo tempo que
nós, pequenos humanos, possamos levar a encontrá-los e a identificá-los. Ora,
sendo esta tarefa, só por si, justificativa dos seis dias que o Senhor levou a
criar todas as coisas e seres, com universal reconhecimento para a sua eficácia
e níveis de produção no labor, mais séria e difícil se tornou a tarefa quando o
próprio Criador, porquanto mais nada existia à altura, ao mesmo tempo que
diferenciava tudo, tudo decidiu interligar em abono da coerência do Universo
criado. Só assim se percebe que, ao nomeá-lo, de Universo o tenha chamado.
É curioso, pois,
que, desde o início dos tempos, andemos nós humanos identificando traços
distintivos e buscando a teia de ligações com a qual se urde a coesão. Sendo
certo que é mais seguro o método científico, muitos adeptos têm as conclusões
empíricas, as mais das vezes por se dizerem fundeadas na experiência e no saber
antigo. E é por esta ordem de razões que sabendo o Povo que os rios são uma
coisa distinta e diversa do mar, deles veio a dizer que correm para este. Da
mesma forma que sabendo as claras diferenças entre o deserto e a floresta,
reconhece que as chuvas que caem nesta tornando-a fresca e frondosa se formam
sobre aquele. E assim nasceram relacionamentos de empírica raiz e comprovação.
O luar e as marés, os movimentos das entranhas da terra e o humor dos animais,
a tela paisagística e o caráter dos homens. E será neste último que nos
deteremos de forma breve por não nos esquecermos que temos uma personagem para
apresentar e uma história para contar. Diz o Povo que os pescadores são bravios
e persistentes como o mar e o vento que os moldou. E diz que os habitantes da
montanha são firmes e fechados como a pedra que os esculpiu. E diz ainda que
são os habitantes da planície tranquilos e de espírito aberto como a planura e
a brisa que os soprou. Fossem todas as paisagens simples e definidas como as
dos exemplos que acabámos de dar e todas as explicações seriam fáceis. Viveriam
os escrevedores os estranho paradoxo de não serem precisos por estar tudo
natural e intuitivamente percebido. Sem história. Felizmente, complicam-se os
acidentes da geografia e entrelaçam-se os sentimentos e os comportamentos no
caráter dos homens carecendo, por isso, de explicação, história contada.
O rio Camowen desce
a montanha excitado e rápido, em torvelinhos, cavalgando rochas,
precipitando-se e gerando escumas brancas de oxigénio donde saltam salmões em
frenesim correndo apressados e ansiosos da morte que os espera. É revolto desde
que nasce e quando chega a Omagh ainda traz o nervo no curso e a excitação no
passar. As pessoas que habitam ao longo da sua caminhada parecem ter essa
pressa, essa agitação e esse sobressalto na atitude. Como se mesmo estando tudo
bem, esperassem sempre uma mudança súbita e para pior, mesmo estando tudo
feito, algo estivesse constantemente à espera de surgir inacabado. Quando Kyle
Mackenzie nasceu, no coração da Irlanda
do Norte, em Omagh, corria o ano de 1948 e já nessa altura se contava a
história de seu avô materno, Joseph Stewart, homem que, segundo as fiáveis
narrativas de pub irlandês sensivelmente à décima Guiness entornada, nascera
apressado, vivera apressado e morrera cheio de pressa para ir ao talho. Falara
depressa, ao ano, falava depressa e diziam que só a mulher, a pobre Mary, o
percebia na plenitude. Fora para a escola antes da idade e abandonara a escola
à pressa sem concluir quaisquer estudos porque queria trabalhar no campo onde
havia tanto para fazer e ninguém parecia querer fazer coisa nenhuma. Saíra de
casa depressa para se casar à pressa com a pressa de honrar a mulher que
engravidara numa cópula apressada entre dois negócios de reses no celeiro de um
leilão de gado. Com a mesma urgência de ir a lado nenhum lhe fez mais sete
filhos, oito ao todo, dos quais seis vingaram e uma viria a parir Kyle com
tranquilidade oriunda de outras águas. Fez nascer, prosperar e falir, que é
outra forma de morrer, pelo menos seis negócios, todos em torno do gado bovino.
Com a mesma pressa que os fazia vingar, assim os perdia e substituía por
outros. Contam que se levantava de manhã, ainda a luz do dia não tinha certeza
de querer vingar, empurrava o ombro de Mary para a acordar com brusquidão e
dizia, Vá lá, mulher, despacha-te, não tarda
nada é hora de almoço! Vestia-se e calçava-se num abrir e fechar de
olhos, engolia o café e o bacon, saía à
rua e começava a dar ordens que podiam, ou não, ter algo a ver com os trabalhos
do dia anterior. Tal como o Camowen, Joseph sempre soube para onde queria ir,
só não sabia bem como, excetuando o ímpeto e a pressa. Um dia levantou-se,
meteu-se no carro e apareceu no rancho a dar ordens e a dizer que se mexessem,
que o trabalho não aparecia feito e ele tinha de ir a Omagh. No meio da
agitação que era a sua presença, alguém lhe disse:
- Senhor Joseph, está
com pressa?
- Que raio de
pergunta é essa, rapaz? Eu estou sempre com pressa.
- Sim, mas mais do
que nos outros dias?
- Deixa-te de
parvoíces e diz lá o que queres que eu tenho mais o que fazer.
- É que o senhor
Joseph está todo vestido mas as calças são do pijama.
Ele largou a rir
umas gargalhadas muito abertas e semirroucas, tirou o chapéu destapando o fogo
ruivo que lhe ardia na cabeça e disse:
- É no que dão as
pressas! Já não volto a casa. Não são as calças que fazem o homem.
Era um irlandês
determinado e engenhoso e era-lhe atribuída a autoria de diversas engenhocas e
mecanismos de utilidade extrema no cuidar e no transportar do gado. Isso e o
"Relógio 48". Quando alguém em Omagh mostrava uma pressa
extraordinária, podia ouvir a expressão, Estás
a precisar de um "Relógio 48". A frase nascera certa noite
entre a oitava e a décima Guiness, num pub local, quando Joseph disse, O meu relógio não tem 24 horas, tem 48 meias horas!
Alguém teve a ousadia de perguntar, E qual é a
diferença? E Joseph rematou, As meias
horas passam mais depressa. Um dia, já com os cabelos brancos e as rugas
com a pressa de lhe marcarem a face, a filharada toda arrumada e entregue à
vida e uma carrada de netos beijados à pressa ao fim-de-semana, Joseph saiu de
casa, disse, Vou ao talho, e meteu-se no
carro. Num cruzamento, olhou para a esquerda e, com a pressa, esqueceu-se de
verificar a direita. Foi abalroado por um camião. No funeral, houve quem
dissesse que o tinha ouvido mexer-se no caixão e ainda hoje se conta que, fosse
por respeito, por medo ou porque o Camowen corria ali ao pé, o Pastor disse no
final do serviço fúnebre, Foi o funeral mais apressado que alguma vez celebrei.
O rio Drumragh entra
em Omagh não muito longe do Camowen a que há de unir-se. Mas é outra atitude.
Sereno e tranquilo, o rio desliza discretamente e há mesmo quem defenda em
Omagh que ele só corre por baixo porque as águas superficiais estão paradas. O
Drumragh não tem os estreitos nem os acidentes do Camowen. É um rio de curso
largo e leito generoso onde é possível pescar um dia inteiro num pequeno bote
amarrado por uma corda de nó simples. Todo ele é discrição e serenidade o que
não significa que seja um curso fraco, pelo contrário, é uma força de água
corrente significativa, mas corre firme e tranquilo sem sobressaltos nem
percalços. Sabe para onde vai e vai com graça e doçura. John Mackenzie, pai de
John Mckenzie, avô de Kyle Mckenzie, nascera assim, tranquilo, vivera tranquilo
e com a tranquilidade de quem parte em
viagem se despediu desta vida. No dia em que o pariu, a mãe sentiu uma leve
dor, pensou, Vou ter o bebé, dirigiu-se
ao quarto, recostou-se na cama e teve-o. Ele cresceu olhando as planuras verdes
do Tyrone bordejando a passagem sossegada do Drumragh. Teve uma infância sem
sobressaltos, uma juventude sem sobressaltos e um dia chegou junto do pai e
disse:
- Meu pai,
enamorei-me de Elizabeth O'Leary e acho que vou casar com ela. O que pensa
disto?
- Penso que é
sensato, mas, meu filho, ela já sabe da tua determinação?
- Não, meu pai, não
sabe. Acho mesmo que não tem a certeza de que eu exista, mas, com calma, tudo
se faz.
E fez. E foi com ela
que casou, foi dela que teve os quatro rapazes. Ao primeiro deu o seu nome por
falta de imaginação e para não se aborrecer mais com o assunto. E foi esse
primeiro que lhe deu o neto, primeiro também, a quem chamaram Kyle Mckenzie.
Conta-se de John
Mckenzie, o pai, que acordava cedo, fazia as suas orações matinais agradecendo
a noite descansada e o novo dia, fazia a sua higiene, vestia a roupa que
Elizabeth lhe deixara nas costas da cadeira e tomava calmamente o seu
pequeno-almoço num ritual de passar manteiga nas torradas, beber o chá com
leite enquanto folheava o Tyrone Advertiser. Depois, saía à cozinha para fora,
inspirava o ar da manhã e, de olhos fechados, erguidos ao céu, pressentia o
dia. Quando abria os olhos podia exclamar, Hummm…
isto hoje vai pôr-se bom. E, assim sendo, todas as tarefas lhe corriam
com fluidez e normalidade. A ele e aos que o rodeavam, por mais complexas e
arriscadas que fossem. Se, por outro lado, ao abrir os olhos, dissesse, Oh diabo, isto hoje é capaz de se complicar,
alguma coisa haveria de lhe ensombrar o trabalho ou a vida de forma a exigir
trabalheiras e canseiras extraordinárias. Tudo passava, suportava e vencia com
o olhar azul e beneplácito, uma palavra de tranquilidade e uma serena palmada
nas costas. Certa vez, por descuido, desprendeu-se a cilha da sela, caiu do
cavalo e foi atropelado por dois bois que terminavam uma manada a acabar de
encurralar. Com o osso da perna a rasgar-lhe o tecido das calças e um empregado
a desfalecer lívido, disse para os que sobravam em pé. Tenham calma, o que
tinha de ser, já foi, vão lá chamar o médico, digam-lhe que tenho aqui um
arranhão. Ficou coxo para o resto dos seus dias e gostou. Costumava dizer que,
se não fosse ser coxo, seria um homem como qualquer outro. Aquela era a sua
marca de individualidade. Aos noventa e quatro anos, viúvo, órfão de dois
filhos e um neto, após um pequeno almoço generoso e tranquilo, comunicou à
enfermeira que tomava conta dele que iria recostar-se na cama porque lhe
apetecia morrer.
- Não diga
disparates, senhor Mckenzie! Para o que lhe havia de dar hoje.
Quando foi ver dele,
daí por uma hora, ele lá estava, recostado na cama, com as mãos sobre o peito,
as pernas de lado para não sujarem a coberta, os olhos tranquilamente fechados,
dormindo o sono dos sonos.
E foi assim que
nasceu Kyle Mckenzie, entre a corrente tumultuosa do Camowen e o sereno
deslizar do Drumragh, com o sangue apaixonado, determinado e efervescente de
Joseph e o olhar azul e a pose tranquila de John. Quando o Camowen e o Drumragh
se unem em Omagh dão origem ao Strule, um curso firme e caudaloso, mas de
deslizar sem sobressaltos. E pode bem dizer-se que o caráter de Kyle foi
temperado por essas águas. A primeira vez que o viu, Joseph não se conteve, Tem o fogo na cabeça, é cá dos meus! E seria,
mas não tanto quanto ele quereria. Por volta dos seis anos, começou a ser visto
em passeios contemplativos ao longo do Drumragh atirando pedras ao rio, falando
às árvores e aos pássaros. Outras vezes, parava, ficava a olhar a água e era
como se toda a sua existência, exceto o corpo, tivessem mergulhado e
desaparecido no leito do rio e, contudo, gostava de aprender. Nunca se negou a
aprender. Aprendeu a selar e a montar um cavalo, os cuidados com a alimentação,
aprendeu a negociar num leilão de gado, a transportar os animais, a diferenciar
uma rês de cobrição e uma de carne, aprendeu as atribuições de cada funcionário
do rancho e como geri-los e, por volta dos dezasseis anos, a família
conhecia-o, mas não fazia a mínima ideia de qual seria o seu destino. Quem via
nele o Camowen dizia que seria um rancheiro de mão cheia. Quem via nele o
Drumragh dizia que ele seria uma alma pacata como o avô John, talvez um médico
veterinário, e ninguém conseguia perceber o meio terreno em que o seu caráter
crescera e se formara. Exceto a mãe que um dia a um jantar, quando todos se
deitavam a adivinhar o futuro de Kyle e a discuti-lo, disse, a destoar das
teorias todas, O coração do meu filho não cabe
no Tyrone! Ninguém percebeu o que ela quis dizer até ao dia em que Kyle
anunciou, sem pedir, Vou para Belfast estudar.
E foi. Mas a essa parte da história iremos daqui a pouco. Por agora, importa
falar das paixões de Kyle Mckenzie, neto de Joseph Stewart e John Mckenzie,
filho de John Mckenzie, criador de gado, contemplador do rio, amador das
mulheres.
Aos dezasseis anos,
o fogo no cabelo era uma certeza rebelde, o que era justificadíssimo motivo de
orgulho, mas não era atarracado, nem de ossatura larga, pelo contrário, saíra
esguio e à procura do céu como a mãe, tinha o olhar azul e profundo, sardas na
face e nas costas, as mãos grandes e um andar cambaleado. A voz grave e forte
com um traço de rouquidão que o fazia parecer mais velho quando falava. Desde
que se conhecia que se sabia apaixonado. A raposa de Éxupery queixa-se ao
principezinho, Rien n'est parfait, isto
porque onde houvesse galinhas, teria de haver caçadores e onde estes não
pusessem o pé também não haveria galinhas. Kyle sofria de um dilema semelhante
com os pais das raparigas. Arriscou sempre, por vezes até a própria pele. São
onze horas, o sol de verão está quase a pino e aquece as águas calmas do
Drumragh, ouve-se o zumbido dos insetos cortando o silêncio e de quando em vez
uma leve brisa vem sacudir a sombra da vegetação nas margens. No meio do leito
está um pequeno bote fundeado com uma âncora pequena. É a calmaria total. Quem
olhe a embarcação da margem não vê nada nem ninguém, quase parece abandonada,
mas fixando bem a vista percebe-se um certo balançar. Da mesma forma que
apurando o ouvido conseguimos perceber uma voz máscula e jovem cortada por um
risinho feminino. Ela está deitada de costas no fundo do bote, o sol doura-lhe
a pele clara e a brisa sopra-lhe o púbis exposto à luz e ao azul do céu e dos
olhos de Kyle que está a seu lado, recostado sobre um cotovelo, elogiando as
formas dela e o sorriso enquanto os seus dedos passeiam o corpo oferecido.
Baixa-se para beijá-la e é o paraíso. Seguido do inferno:
- Kyle
Mckenziiiiiiie! Seu grandessíssimo filho da puta, salvo seja, que a tua mãe é
uma santa senhora que não merece o filho que tem, eu vou buscar-te seu atrevido
e encho-te o corpo de chumbo!
Kyle manteve-se
calmo, riu-se com ela, abraçaram-se. Bastava que ficassem quietos e nada
aconteceria. Mas aconteceu. Quando ouviu o ruído dos barcos a motor, Kyle
disse-lhe, Fica quieta, eles querem-me a mim,
vão atrás de mim e esquecem-se de ti, nunca te levantes. Ela riu,
puxou-o para si, agarrou numa mão dele que levou ao seu púbis e disse-lhe ao
ouvido, Kyle Mckenzie, não te atrevas a ser
apanhado hoje; à meia-noite no celeiro do meu pai! Estás louca? Ou é isso ou
nunca mais me tocas. Seja! À meia-noite no covil do lobo! Kyle levanta a
cabeça, olha à sua volta, são dois barcos, um vem descendo a corrente e outro
vem-na subindo, olha para a margem, pensa que consegue mas, Vai ser por um triz, e faz-se ao rio
completamente nu, nada desalmadamente para a margem oposta àquela em que está o
pai ofendido, sim, o pai, que a donzela já se percebeu de que lado está, os
homens nos barcos percebem-lhe o plano e dirigem-se para a margem, Kyle chega
primeiro a terra e começa a correr em direção a um arvoredo perto, quando os
homens se preparam para iniciar a sua corrida de perseguição, a rapariga, por
curiosidade, levanta a cabeça, um acompanhante do pai ofendido vê-lhe a
cabecita a espreitar e exclama:
- Olha, Ron, não é a
tua filha!
- Olha, pois não, mas
devíamos dar uma lição àquele malandro!
- Sê sensato, Ron, tu
não és o ofendido… sabes lá se a rapariga estava ali autorizada…
- Olha lá, mas tu
'tás parvo ou quê? Aquele era o Kyle Mckenzie, a única autorização que ele tem
é a sua própria para perseguir todas as raparigas do Tyrone…
- E para curar as
tuas éguas quando sofrem de peeira.
- Lá nisso tens
razão.
Fez um gesto para os
perseguidores de Kyle na outra margem e gritou:
- Rapazes, vamos
embora, esse safado não merece o combustível dos barcos nem o tempo que
perdemos com ele, além disso nem sei quem é a rapariga…
- É a filha do…
- Cala-te, besta, já
te disse que não sei quem é a rapariga!
À noite, no celeiro
de telhas falhas, a lua substituiu o sol na cumplicidade dos murmúrios abafados
pela palha e a Natureza cumpriu a sua missão.
Outras vezes
entregava-se à conversa com os animais. Gostava particularmente de pedir
conselhos ao Malte. Fora um garanhão promissor para as corridas, mas a
necessidade levou a que a sua força fosse aproveitada nos trabalhos do rancho.
Em vez de passar a vida a correr com outros cavalos, tinha nas suas corridas o
propósito de juntar as reses do gado. E cobria. A sua linhagem era de tal forma
garbosa que os Mckenzie se davam ao luxo de cobrar quantias exorbitantes por
cada vez que o espantoso animal plantava uma sementinha de si numa égua da
vizinhança. Hoje trabalha pouco. Está velho e cansado mas nunca foi abatido
porque se tornou numa figura do Clã Mckenzie e num símbolo do rancho. Kyle
gostava de pegar no Malte e caminhar à beira do rio e pelas estradas de terra
sem o montar. Ia andando e ia-lhe contando as suas aventuras com as raparigas,
os problemas na família, a contabilidade do rancho, os projetos para o futuro e
contava depois que o Malte dava bons conselhos. Quando chegava à primeira
localidade depois do rancho, entrava no pub
com o Malte pela mão e pedia duas pints,
uma de homem e outra de cavalgadura. Mickey, o empregado de balcão, servia uma pint de Guiness a Kyle e vazava dois litros
de cerveja num balde, passava o balde a Kyle que o segurava enquanto Malte
bebia a sua Guiness tranquilamente. Saíam os dois semiébrios e conversando de
coisas menos sérias. Os amores de Malte, o sentido da vida, o significado da
sombra das árvores, o porquê de cada rapariga ter um pai e esse pai ser
obcecado por caçadeiras... e faziam poesia juntos. Partes desses poemas,
aquelas que Kyle conseguia relembrar no dia seguinte, registava-as num
caderninho de escrita pequenino que guardava na mesa de cabeceira e tinha
escrito na capa "Poemas de Kyle Mckenzie e seu ajudante, o Grandioso
Malte".
A vida no liceu de
Omagh também não era fácil para o jovem e ruivo Mckenzie. As alunas queriam
estudar com ele, as professoras queriam que ele estudasse para elas, as
raparigas queriam-no apanhar sozinho para marcar encontros fortuitos e lutar
pela exclusividade da sua atenção, as professoras queriam-no apanhar sozinho
para tentar convencê-lo a seguir a sua
área e todas, sem exceção, lhe sorriam e, à sua maneira, o seduziam. E Kyle ia
bebendo as palavras delas, alunas e professoras, e ia mergulhando nos decotes
delas, alunas e professoras, e ia-se deixando seduzir por elas, alunas e
professoras e quando cresceu e o percurso no liceu se aproximou do fim, Kyle
navegava no corpo delas, alunas e professoras. Gostava de deitar-se com os
lábios junto ao sexo delas soprando o púbis para o ver revolto como os rápidos
do Camowen e ficava contemplando as formas onduladas dos corpos como se
estivesse visitando as dunas do deserto mas com o insuperável odor de um corpo
de mulher depois do amor. Era um aluno contraditório, quase misterioso. Andava
por ali displicente, um caderno preto no bolso de trás dos jeans, o olhar perdido nas raparigas e na
folhagem das árvores, Que andas a fazer
Mckenzie? A pensar. A pensar? Pensar, pensamos todos nós. Aí é que te enganas,
a maioria de nós não pensa, reage. Pensar dá trabalho, é gerador, iniciático.
Viravam-lhe as costas e iam à sua vida e Kyle continuava no labor de pensar. O que é que queres ser na vida , Mckenzie? Pensador.
Pensador? Ninguém ganha a vida como pensador! É porque ainda ninguém pensou o
suficiente. No último ano do liceu, as coisas precipitaram-se na sua
mente. Se bem que o mais correto não é dizer-se que se precipitaram, mas antes
que foram precipitadas. Miss Melanie era uma professora de Inglês que usava
sempre uma saia de fazenda comprida, uma blusa de seda com gola aos folhos e um
grosso casaco de lã por cima. Tinha uns óculos pequeninos, o cabelo apanhado
atrás num totó e uma rede a envolvê-lo. Trazia invariavelmente uma pasta de
cabedal preta, nunca se atrasava e nunca se esquecia de perguntar por um
trabalho que tinha pedido. Foi ela que lhe deu a beber a fluidez melódica de
Shakespeare, o romantismo extremado de Lord Byron, a intriga familiar e rural
de Jane Austen e a fantástica e perturbante veia realista de James Joyce. E
tentou-o com ideias. Um dia disse-lhe, Livra-te
de ficares nesse rancho a dar cerveja a um cavalo, já pensaste que, ao
contrário do que te deixam acreditar, tu podes viver de pensar e, mais
importante, de ensinar a pensar. Tu percebes a literatura, tu sentes a
literatura, tu vives a literatura e, à parte algumas falhas por desleixo, tens
um bom domínio do inglês, darias um excelente professor, não fiques aqui, Kyle
Mckenzie, vai estudar miúdo, vai estudar, andas fascinado com todos esses
autores e as suas ideias e a sua sensibilidade e nem sabes tudo o que estás a
perder, há mais, Kyle, há muito mais e na universidade podes ter acesso a tudo.
O discurso, diversas vezes repetido, era motivador, espicaçava a curiosidade
mas só por si não provocaria uma epifania. Susy provocou. A verdade é que,
nesse ano, Miss Melanie, de palavras distantes, mas apaixonadas, adoeceu
gravemente, fruto da idade a que estamos, todos nós humanos, sujeitos. E foi o
contraste de todo esse entusiasmo, dessa capacidade de fazer parecer que cada
palavra era um milagre, com o discurso leviano e superficial de Susy que o
levaram a decidir. Era uma rapariga jovem, recém-formada, reagiu muto bem aos
encantos dele e sabia perfeitamente o que estava nas páginas centrais dos
tablóides, o problema é que, para ver o milagre das palavras em Shakspeare ou
em Joyce, era preciso um pouco mais e para esse pouco a ela faltava-lhe muito.
Susy está deitada na penumbra do seu quarto alugado em Omagh. Ao seu corpo nu
chega uma ténue claridade que faz bailar sombras no seu ventre e derrama nos
seios pequeninos e redondos um mar de prata. Kyle está como mais gosta, com os
lábios junto ao sexo dela soprando os pelos do púbis. Fazem pouco efeito porque
estão aparados muito curtos como se fossem um risco preto numa folha prateada
de luz. Ele observa-lhe as formas, apetece-lhe perceber aquele encanto, quer
saber o que pensaram e o que escreveram os homens sobre as maravilhas do mundo
e, entre elas, sobre esse deleite que é observar um corpo tombado, oferecido à
luz ténue e prateada de um fim de tarde. E, estranhamente, lembrou-se de Miss
Melanie. Nunca a senhora lhe oferecera o corpo, nem a ele nem a nenhum outro
homem em toda a sua vida, mas dera-lhe as explicações todas, as possíveis,
dadas as limitações. Susy, por seu lado, dera-lhe o corpo sofregamente, mas não
tinha uma única explicação que superasse a banalidade e Kyle, contemplando-lhe
as formas, percebeu que lhe faziam mais falta as explicações. Faziam-lhe a
falta toda. Levantou-se, vestiu-se à pressa, deixou-a com uma interrogação na
mente e outra nos lábios, Está tudo bem, Kyle?
Ele não chegou a responder. Apressou-se. Chegou a casa e disse, Meu pai, minha mãe, vou para Belfast estudar.
E foi. Inscreveu-se nos exames que superou com assinalável
sucesso,matriculou-se no curso de Língua e Literatura Inglesa e quando foi
aceite chegou-se a casa de Miss Melanie e disse-lhe baixinho, Conseguimos, Miss Melanie, conseguimos. Ela
sorriu, prostrada na cama, e respondeu com ternura, Conseguiste, miúdo, tu é que conseguiste e, Kyle, isto é só o
princípio. No outono de 1967, Kyle entra em Belfast com dezanove anos
para conquistar o coração da cidade e desbravar todo o saber. Conquistará
Belfast, há de desbravar muito do conhecimento e será também em Belfast que o
seu coração ficará cativo para quase sempre.
É para nós
informação óbvia sabermos que habitamos uma cidade se de uma cidade se tratar.
E por vezes, seja por ignorância ou por vício, ao dizer a palavra cidade,
fazemos a evocação mental de um emaranhado de edifícios. Nada mais errado,
porquanto as cidades são, sobretudo, o que nelas se vive e como se vive. Já
constitui facto menos óbvio e percetível haver cidades que nos habitam. Podemos
até nunca ter vivido nelas, mas vive em nós o seu espírito e se calha o destino
levar-nos até lá, de imediato nos identificamos e concluimos, Oh, mas eu sou daqui! É um fenómeno recorrente
identificarmos em nós o espírito de uma cidade. Descobrirmos, como já se disse
que éramos habitados por ela mesmo antes de habitarmos nela. Foi essa
compatibilidade e essa sintonia que Kyle Mackenzie descobriu em Belfast. E por isso
a sua adaptação foi tão rápida e harmoniosa. Há pouco tempo lá estava e era
como se lhe conhecesse os segredos todos, como se sempre ali tivesse vivido. Os
três primeiros anos foram o perfeito encantamento, o príncipe e a princesa, o
enamoramento do homem pela urbe que o completa. Frequentava as aulas,
empenhava-se nos trabalhos, debatia com os colegas e com os professores,
escrevia para o jornal da universidade, ia a palestras sobre tudo o que lhe
interessasse, História, Filosofia, Arte e sempre, sempre a Literatura.
Organizou tertúlias e outras organizavam-se sozinhas e eram as mais
apetecíveis, noites inesperadas e espontâneas a discutir o pensamento do Homem
e a sua expressão, bebendo Guiness e
beijando quem se deixasse beijar ou devolvesse a carícia só porque sim. Tudo
começava num pub e acabava no dia
seguinte em casa de alguém, corpos seminus e mal acordados, a vida saboreada,
discutida e levada do prazer do estímulo intelectual até ao suor gemido da
carne. O ruivo de Omagh começou a ser conhecido em Belfast e a criar a sua teia
de relações de tal forma que, quando voltava às margens do Drumragh, se sentia
pacificado e inquieto. Primeiro, pela tranquilidade que bebia do lugar. Depois,
porque lhe faltava o ópio e esse ópio chamava-se Belfast. Era comum ouvir-se
nos corredores da universidade frases como, O
ruivo disse, O ruivo marcou, O ruivo mandou fazer… Kyle conquistou Belfast
e tomou posse no trono do conhecimento e dos relacionamentos. E, da mesma forma
que Belfast era para si uma droga, ele parecia ser uma droga para Belfast.
Havia quem arriscasse que Kyle nunca mais deixaria a Irlanda do Norte, mas,
como o leitor já percebeu, enganou-se quem tal disse e se tivesse feito aposta,
perderia. A sua mudança começou em 1970 e o curioso é que daí em diante e até
conhecer Madalena, as coisas iam suceder-lhe de dois em dois anos. Como ele
diria mais tarde, Vivi de biénio em biénio.
Um dia, nesse ano, cruzava um dos jardins junto à universidade, abraçado a
amigos, e viu-a passar entre duas moças com quem conversava. Era alta, muito
loira, os olhos verdes e líquidos, as ancas generosas e tinha um sinal junto ao
nariz, por baixo do olho direito. E deu-se o caso incomum de ele ter olhado
para ela e ter continuado a conversa como se nada tivesse visto, mas algo lhe
ficou gravado na mente que o suspendeu da conversa , deu mais quatro ou cinco
passos, segurou os amigos que o ladeavam por um braço para os calar e
perguntou:
- Vocês viram aquilo?
- Aquilo o quê,
rapaz?
- Vai ali a mulher da
minha vida!
Os tipos abriram a
boca, pensaram que era Guiness a mais e
iam para gozar com ele quando ele lhes virou as costas, correu para o grupo de
moças e perguntou ^`a do meio:
- Olá, como te
chamas?
- Sandrine…
- Sotaque… francês!
- Suíço! Se é que
isso existe…
- Deve existir, tu,
pelos vistos, tens um…
- Sim, tenho,
querias…
- Queria perguntar-te
se queres passar o resto da tua vida comigo…
- Se quero, não sei,
mas acho que o mínimo que posso fazer perante tanta ousadia é perguntar quem
pergunta.
- Kyle Mckenzie… já
viste como soa bem?
- O teu nome?
- Não. O teu.
Sandrine Mckenzie. É brutalmente multicultural.
- Bebes uma cerveja,
Kyle Mckenzie?
- Não, mas aceito uma
Guiness!
Era uma daquelas
moças que está uma temporada noutro país
a estudar ao abrigo de um programa com o nome de um filósofo antigo
qualquer. Ao cabo de três meses viviam
juntos. Foi numa paixão fulminante e intensa. Eram de áreas diferentes e
costumavam brincar dizendo que se completavam. Kyle mostrou-lhe a cidade,
leu-lhe poesia ao luar e à chuva, fizeram amor em todos os locais que
consideraram dignos do seu amor, dançaram, riram, choraram e quando ela partiu,
Kyle ficou melancólico e abatido e iniciou um período de visitas frequentes a
Genebra, ao longo de um ano, para visitá-la e tocar-lhe e beber-lhe a vida e o
espírito.
O inverno vai
rígido. O frio aperta com inusitada severidade.
Finda janeiro de 1972 e as piores vontades dos homens combinaram
encontrar-se no domingo, dia 30. Kyle espreguiça-se na cama desfeita do quarto
em desalinho e batem-lhe à porta com tal força que parecem querer derrubá-la.
- Kyle! Ruivo, ó
ruivo, acorda, pá!
Ouve as vozes,
dirige-se para a porta, quatro ou cinco colegas irrompem pelo quarto em
altercação e o confuso é que Kyle não consegue perceber se estão assustados ou
entusiasmados e isso há de entristecê-lo em breve.
- Mas afinal o que é
que se passa?
- Foi fantástico e
terrível, pá, colocaram uma bomba numa igreja e limparam o sebo a uma carrada
deles!
- Onde é que foi
isso?
- Em Derry, pá! O que
pensas disto?
- Desnecessário. É
uma catástrofe desnecessária. Nós pensamos o que pensamos e às vezes pensamos
pouco. Algum de vocês é protestante porque pensou no assunto ou herdaram todos
essa condição como se fosse uma doença?
- Não digas isso, pá,
eles são separatistas, pá!
- Sim, e nós somos
unionistas! Andamos a unir o quê, rapazes? E como? À bomba! Eles cometem
crimes, nós cometemos crimes e tudo não passa de um gigantesco crime e têm
razão, rapazes, é preciso fazer alguma coisa…
- O que é que vais
fazer, Ruivo?
- Vou a Derry!
Kyle foi a Derry
depois do domingo sangrento, visitou as famílias de algumas vítimas, sobretudo
as mais jovens, e pediu-lhes desculpa pela insanidade dos homens. E rezou com
elas. A sua alma enlutou-se de vez. O sol da sua vida estava em Genebra. E
aqui, a violência atingia expressões indignas da sua terra natal. Concluiu o
curso nesse ano. Lecionou inglês durante um ano em Belfast, mas não conseguiu
suportar a escalada de agressividade e violência, não conseguiu assistir aos
seus colegas conspirando atos de morte, não conseguiu suportar a ausência de
Sandrine. Em 74 mudou-se para Genebra, definitivamente. Nunca mais daí sairia.
Exercia como professor de inglês na universidade e visitava regularmente as
margens tranquilas do Drumragh ou as revoltas do Camowen. Essa regularidade
foi-se perdendo e as visitas à Irlanda tornaram-se mais esporádicas. Vivia para
Sandrine. Envolto no amor por ela. Com ela. Dois anos depois casaram. Uma
cerimónia íntima de meia dúzia de pessoas, umas palavras de circunstância e
fugiram para uma cabana na montanha a fazer amor. Não frutificou, então, mas
viria a dar frutos mais tarde. Duas meninas, Mary em 78, pelo trigésimo
aniversário de Kyle e em 80 veio a rebelde Charlotte. Kyle dedicou-se em
exclusivo às suas três mulheres e fez delas a sua alegria e a sua razão de
viver. Percebeu a importância de ensinar jovens. Ser pai fez-lhe mudar muitas
opiniões e perspetivas. E foi por essa razão que em 82 mudou de trabalho.
Continuou como professor de inglês, mas optou por ensinar os mais jovens no
secundário. E essa opção viria a mudar a sua vida, por mais breve que fosse.
Viria a dar-lhe a oportunidade de acreditar de novo no Ser Humano. E bem
precisava. Sandrine, paixão de juventude, mulher nas alegrias e nas tristezas,
mãe das suas filhas, fora surpreendida na cama, suando com outro homem, gemendo
com um estranho. Essa infidelidade corroeu-o por dentro, desiludiu-o em relação
a tudo e a todos. Kyle declarou que 1984 seria o ano horribilis da sua vida. Enganou-se. Em 1986 foi-lhe
diagnosticado um cancro no cólon e o casamento, de mil maneiras fragilizado,
sucumbiu. Atormentado por uma doença cuja fama a precedia, a exigir exames e
tratamentos violentos, fustigado pela deceção de um divórcio que se anunciara e
surgira na pior altura, Kyle não espera nada da vida nem das pessoas. Assim,
quando o ano letivo de 1987/88 começou, o homem que entrou na sala de aula
apresentado como professor de inglês era um tipo cinzento e desiludido.
Acontece que a vida não se domina nem se controla e tem os seus próprios
caprichos. A nós, humanos, cabe-nos aceitar a nossa vulnerabilidade e passar o
tempo com a maior dignidade possível e, se for caso disso, usufruir das boas
surpresas que ela nos reservar. A Kyle reservou só mais sete anos, mas
reservou-lhe os mais luminosos, os mais intensos, e os mais belos. Esses sete
anos valeriam uma vida, como já se disse. Valeram a vida de Kyle Mckenzie e a
paixão de Madalena.
---------------------- jpv ----------------------