A Paixão de Madalena - Capítulo 6

 A Paixão de Madalena


Livro I - A Paixão de Madalena


6. A liberdade é um conceito. Às vezes também é um facto. Uma realidade. Não acontece sempre. E as mais das vezes nem é porque seja cerceada por terceiros, é porque nós próprios a desconhecemos, ignoramos os seus limites, e navegamos pela vida sem percebermos que liberdade temos, que liberdade podemos ter, que liberdade queremos ter e, não menos importante, que liberdade é a dos outros. Madalena sabe. Não sabe porque tenha pensado nisso, refletido e consciencializado. Sabe, porque sente no seu íntimo o desenho dos limites da sua ação, do seu desejo e do bater do seu coração. E foi por isso que decidiu mudar. Não sabe ela porque decidiu naquele momento da sua vida, naquele dia, naquele serão, e, por certo, não o sabemos nós que imperscrutáveis são os desígnios das personagens, mormente, das que são dotadas de caráter e vontade própria, como é ocaso. Ainda assim, podemos deitar-nos a adivinhar. Uma teoria possível é a do irrompimento. Há ideias que irrompem como plantas. Certo será que tiveram seu tempo de gestação, contudo, concentramo-nos nós por força da evidência no momento em que rompem a terra e beijam a luz em sua fragilidade que é afinal a inteira pujança da vida.

Madalena estava sentada num cadeirão da sala. Era uma cadeira antiga com braços de madeira estofados por cima em tecido de flores envelhecidas rodeado por uma fileirinha de tachas de latão pregadas muito juntas. Assentava um cotovelo num desses braços da cadeira e havia dobrado as pernas para as guardar debaixo de si. Tinha um pijama vestido. Segurava um livro aberto com os dedos da mão em V. A luz em redor era suficiente mas amarelecida. Nem ela, nem Kyle gostavam da agressividade das iluminações jorrantes de watts. Tinham feito amor ao final da tarde, depois um duche quente, depois um chá com leite e biscoitos de manteiga e, por fim, abandonaram-se às leituras que tanto apreciavam e estavam devorando páginas quando Madalena começou a mudar de posição frequentes vezes. Ele levantou os olhos por cima do óculos de ler e percebeu que um incómodo a apoquentava. Não era físico. Era uma comichão na mente. Regressou ao livro sem lhe dizer nada nem voltar a olhar para ela. Conhecia-a a bem e sabia que, o que quer que fosse, rebentaria em breve em palavras atrapalhadas e mal organizadas, primeiro, e depois num discurso mais pensado e terno. Decidiu esperar, portanto. Assim foi. Ela estava pensando, desenhando hipóteses, organizando o pensamento e ele, mesmo sem saber, entrou nessas linhas de vida traçadas pelo coração dela. Entrou e interrompeu a sequência do pensamento dela. Havia ali uma informação que, por despiciente que fosse, era fundamental para a organização que ela estava a dar às ideias. Aborrecida pela quebra da fluência das ideias e, sobretudo, pela continuidade do seu raciocínio depender de terceiros, colocou um ar interrogativo e sério e perguntou como quem desafia:
-Tu queres casar comigo?
-Já pensaste na hipótese de abandonares o curso geral e fazeres um curso profissional de contabilidade e administração?
-Não desconverses. Eu fiz-te uma pergunta séria.
-Em primeiro lugar eu não posso desconversar porque não havia conversa nenhuma, em segundo lugar se tu podes fazer perguntas do nada que não têm nada a ver com nada, eu também reclamo para mim esse direito e, por fim, doce Madalena, dificilmente a tua pergunta é mais séria do que a minha.
-Estás mesmo a falar a sério?
-Claro. Muito a sério…
-Hummm, não me apanhas, primeiro a minha pergunta.
-Porquê a tua primeiro? Eu sou mais velho…
-Muito mais velho! Acontece que eu perguntei primeiro.
-Estás a pedir-me em casamento?
-Como?!
-Já vi que não… o que queres com essa pergunta?
-Pensei que era óbvia…
-Mas não é!
-Pois, preciso de saber, quer dizer, estava aqui com um pensamento e de repente pareceu-me importante saber se tinhas intenção de casar comigo um dia, se para ti isto é para continuar, se… enfim, eu tenho uma ideia, vamos dizer uma determinação, mas ela só faz sentido contigo na equação…
-Quase me assustas, mas… mesmo não sabendo se casaremos ou não, conheces as minhas reservas em relação ao casamento, sei que farei parte de todas as equações em que estiveres, enquanto quiseres…
-Queres com isso dizer…
-Quero dizer que seja lá o que for que essa cabecinha esteja a magicar, podes contar comigo para tudo!
-Uau!
-Uau?
-Sim, uau! Já viste que acabaste de fazer uma extraordinária declaração de amor?
-Não pensei nisso, mas tudo o que vai de mim para ti leva amor.
Madalena saiu do cadeirão, dirigiu-se à secretária, abriu uma gaveta, tirou um caderninho e começou a registar apontamentos e a escrever pedaços de texto e unia-os com traços e gráficos e datas. Kyle, em tom sereno, interrompeu-a:
-Não vais responder à minha pergunta?
-Está tudo aqui.
-Onde? Nos rabiscos?
-Não são rabiscos. É um plano.
-Um plano. E acaso posso saber do que se trata? É que muito dificilmente não estarei envolvido nele e tu tens a mania de ter esses ataques de determinação, assumes e fazes e mudas e não perguntas nada… tens de partilhar.
-Tens razão. Em todo o caso isto são coisas minhas… envolvem-te, sim, mas são determinações minhas.
-Não serão nossas?
-Minhas com a tua ajuda…
-Ok, como queiras, o que se passa?
-Quero seguir o teu conselho e mudar para o profissional de contabilidade, quero trabalhar e, sobretudo, quero tratar da minha emancipação.
-Sabes ao menos o que é uma emancipação?
-Vá lá Kyle, leva-me a sério… que sentido faz depender dos meus pais para tudo, para todas as assinaturas e autorizações, estar constantemente a depender dos contactos entre a minha avó e eles, se eu sei o que quero da vida, como quero, com quem quero… eu não preciso de ninguém para decidir por mim ou para me autorizar o que quero para mim. Eu decido a minha vida. Então que isso fique claro. Que se acabe de uma vez por todas com essa farsa que é a tutoria dos meus pais…
-Não forces. Não avances tu, não vás à frente. Fala com Albertina. Ela levantará o assunto, dirá que será mais prático, dirá que é para facilitar e depois entras tu e tratas da papelada…
-Por mim, falava com eles, explicava tudo e arrumava o assunto.
-Não arrumavas nada. Tens de ter sentido estratégico…

E teve. Avançou para o curso de contabilidade. Fez uns exames de equivalência que superou com facilidade e a roçar o brilhantismo. Conversou com Albertina e surpreendeu-se com a naturalidade com que a avó encarou a ideia e se dispôs de imediato a conversar com os pais. Fosse porque reconhecessem a independência de sua filha Madalena, fosse porque o destino os obrigara a confiar os passos da jovem ao critério de Albertina ou, mais seguramente, fosse por medo de acordarem fantasmas do passado e reabrirem feridas nunca verdadeiramente saradas, os pais de Madalena, mesmo discordando claramente da ideia, quase não se opuseram. Uma leve resistência que cedeu aos primeiros argumentos de Albertina. Os papéis foram tratados, assinado o que havia para ser assinado, autorizado o que havia para ser autorizado, renunciado o que havia para ser renunciado, assumido o que havia para ser assumido e uma mulher nasceu. Já nascera a menina, depois nasceu mulher para um homem e agora nasce mulher para si e para o mundo. Em abril de mil novecentos e oitenta e nove, no dia do seu décimo sexto aniversário, Madalena enverga um vestido lilás de roda larga e mangas apertadas no punho com um botãozinho pérola. A entrega do processo foi surpreendentemente fácil. O mais difícil seriam as sessões seguintes. Ora sozinha, ora com Albertina, ora com Kyle, Madalena viu a sua vida vasculhada, a sua intimidade devassada. Respondeu a tudo com serenidade. Três meses depois, numa manhã chuvosa e fria, sai do tribunal, corre para o carro, beija Kyle com sofreguidão e diz-lhe, Conseguimos, meu amor, conseguimos. Já não sou tua por empréstimo, sou uma mulher que decide o que fazer com a sua vida e eu entrego a minha nas tuas mãos, Kyle Mckenzie. Oh! Princesa! A tua vida a ti pertence e a mais ninguém. És uma alma livre, sempre serás. Tens a fragilidade das flores e a tenacidade dos seres mais fortes e resistentes… não serás minha, nunca. Serás sempre de ti e é isso que amo. Serei teu companheiro enquanto conseguir. Deixa-te de lamúrias, irlandês teimoso! Quero-te ao meu lado para sempre, prometes? Prometo. Kyle ainda não sabe, mas há de cumprir a promessa.

Não é que precisasse, mas decidiu trabalhar para sentir o sabor da autonomia. Com a ajuda de Kyle, conseguiu um trabalho à noite num pub onde se jogava snooker em mesas dispersas num enorme salão de mesas atapetadas de verde e longos candeeiros sobre elas projetando luzes fortes. Madalena servia as mesas, limpava-as, mantinha a sala limpa e enquanto se deslocava apaixonava-se pelo jogo. Tudo aquilo lhe parecia matemático e fácil. Calculável como uma equação. Kyle não a vigiava, mas ficava por ali muitas vezes. Agradava-lhe a ideia de a ter por perto enquanto bebia uma Guiness. O orçamento dele daria perfeitamente para viverem confortáveis como, de facto viviam, mas não podia cortar-lhe o sentido de independência e realização que só com o trabalho se conquista. Era preciso que crescesse e este sacrifício de estudar e trabalhar e viver com ele e para ele estava a fazer da menina cada vez mais mulher. De alguma forma, Kyle percebera que só a reteria junto a si se a soltasse. Qualquer atitude de posse, qualquer movimento de retê-la, seria perdê-la para sempre.

Um dia Madalena atrasou-se no trabalho. Era já tarde e Kyle adormecera. Acordou assustado, meteu-se no carro e encontrou o pub fechado com uma luz trémula lá dentro. Bateu à porta devagarinho, sentiu passos, um homem de barba por fazer e uma chama velha de cigarro ao canto da boca abriu-lhe a porta e disse-lhe:
-Entra, não vais acreditar nisto.
-O que se passa?
-A miúda…
-O que tem a miúda?
-Está a dar uma coça ao Liam!
-Ao Liam? Mas… espera, ao jogo?
-Ao jogo… ela tem muito jogo!
-Mas quando é que ela aprendeu a jogar?
-Uma noite destas, o próprio Liam ensinou-lhe as regras e deixou-a experimentar, foi já no fim da noite e, para um primeiro contacto, aquilo foi promissor… depois parece que treinou um bocadinho nas últimas noites depois de fechar o salão…
-Por isso estava a chegar mais tarde. E a dizer-me que era o trabalho…
-Sabes como são os jovens… mas olha que esta vai longe…
-Snooker?! Só me faltava esta!

É claro que jogaram juntos. Madalena ganhava-lhe quase invariavelmente e só quando via Kyle desesperar, errava umas bolas e perdia uns pontos e ele recuperava a sua dignidade masculina. Mil novecentos e oitenta e nove. Dezasseis anos. Uma menina feita mulher entregue a si própria. Uma estudante de sucesso. Uma trabalhadora dedicada. Uma jogadora de um jogo tradicionalmente masculino. Uma alma livre. Um coração indómito. A vida toda pela frente. Quando chegou o Outono e os primeiros frios, acendiam a lareira ao fim de semana e ficavam lendo enroscados um no outro, por vezes trocavam impressões sobre a leitura, outras vezes ficavam em silêncio encostados um ao outro a sentir o calor do fogo e dos seus corpos encostados. Foi num desses momentos que Kyle resolveu reinventar a pergunta:
-Tu queres casar comigo?
Ela não confundiu a pergunta com nenhuma outra e não hesitou na resposta. Já tudo havia sido dito sem palavras, agora que era preciso fazê-lo com elas, sabia bem como. Mais uma vez foi sucinta e direta. O brilho no olhar e o som a ecoar no coração dele:
-Quero!

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