A Paixão de Madalena - Capítulo 11


A Paixão de Madalena

Livro II - O Cordeiro de Deus

11.Madalena nunca pôs luto. No corpo, bem entendido. Que na alma ficou-lhe para sempre essa sombra cinzenta. Pense o leitor o que entender, o facto é que não houve só uma razão. Foi porque Kyle não era um homem de lutos, mas de coloridos. Não era um homem de abatimentos, mas de lutas e causas e de acreditar. Foi porque era demasiado nova para isso. Madalena enviuvou com vinte e um anos e essa não é a idade de escurecer a pose, antes de a iluminar. E outra razão houve, a mais importante de todas. Vai para cinco anos que Liberta bateu à porta de Madalena que lha abriu e lhe aceitou nos braços uma menina de semanas, por uma semana. Passou a dita semana e outra e mais outra e outra ainda e já vamos em cinco anos sem que de Liberta se tenha tido mais notícia. E dessa relação, a de Madalena com a menina, tem sabido pouco, o leitor. Soube que a menina ficou e soube que andou por terras de África com Madalena a quem, com muito propósito, chama de mamã. São engraçadas, as crianças, menos complicadas que os adultos. A sua justiça é imediata e é a da vida. Não precisou de mais nada senão saber que era daquela jovem mulher que lhe vinham os cuidados, os afetos e os ralhetes, que são outra forma de cuidado, e chama-lhe mãe, por mãe ser, sem mais juízos de valor com intrincados raciocínios sobre a biologia da maternidade. E pode dizer-se, em ambígua, mas verdadeira formulação, que foi Madalena mãe, antes de ter sido mãe. Foi em Mariana que aprendeu a mudar fraldas, foi com ela que aprendeu os cuidados com as refeições, as horas, incluindo noite dentro, os alimentos indicados para isto e para aquilo e os contra indicados para aquilo e para isto, foi a ela que aturou birras e as acalmou, foi com ela que aprendeu a ver febres e a medicá-las, foi com ela que passou noites em branco, que conheceu as urgências do hospital, a ela ensinou os primeiros passos, correndo dos seus braços para os de Kyle e voltando aos seus com um sorriso a espelhar medo e vitória, foi a ela que ensinou as primeiras palavras, por esta universal ordem: não, mamã, papá. E por aqui se vê quão funda vai a relação entre elas, mesmo estando Mariana em tão tenra idade. A primeira vez que Mariana disse mamã, chamava por Madalena e não por Liberta e à medida que foi dizendo outras palavras e apropriando-se, com elas, do mundo à sua volta, fê-lo com a orientação e o amparo de Madalena. E agora, venha de lá o cientista, o médico, o juíz, o cidadão comum, mais certificado, com diplomas de insígnias douradas emoldurados e pendurados na parede, convencê-la de que mãe é aquela que a pariu. Saiu de dentro dela, é certo, mas não foi com ela que cresceu.

Brincavam ao fim de semana, sobretudo ao domingo. Iam ao parque, faziam corridas e Madalena ouvia-a dizer, Olha, mamã, olha, é um pato! É sim, minha pequena, é sim. Respondia-lhe reforçando o entusiasmo da descoberta. E ao longo dos últimos quase cinco anos fizeram-se cúmplices. Nota-se essa cumplicidade nas coisas pequeninas do quotidiano, por exemplo, quando Madalena chega a casa do trabalho e vem cansada e abatida e segue para a cozinha a aquecer o jantar e sente a mão pequenina dela puxando a saia:
-'Tás triste mamã?
Outras vezes, no supermercado, a menina põe-se em bicos dos pés, segura o carrinho das compras e tenta empurrá-lo:
-A Maiana leva, a mamã 'tá cansada.
Quando Kyle faleceu, explicações foram necessárias. Madalena optou pela simplicidade nas respostas:
-Onde 'tá o papá?
-O papá foi para o céu.
-O céu do Jesus?
-O céu do Jesus.
Levou-a à janela, mostrou-lhe o céu e disse:
-Vês aquela estrelinha pequenina, ali em cima?
-Sim.
-Quando ela piscar, foi o papá que te piscou o olho.
-O papá vê a Maiana?
-Claro!
-Olha mamã, olha, o papá piscou o olho!
Inexplicável força têm as crianças. Muito para além do seu tamanho e da consciência que lhes atribuímos, porquanto, não raro, foi Mariana que amparou Madalena na dor e no sofrimento. Parecia perceber os momentos em que era necessário o seu olhar doce, a sua voz apaziguadora ou a sua mão pequenina encostando-se à face de Madalena:
-Não chores, mamã!
E assim têm sido conforto uma da outra, alegria uma da outra, amparo uma da outra, e por esta razão, sobretudo por esta, Madalena não pôs luto. Não se cria uma criança no degredo. E sorria quando lhe apetecia chorar, brincava quando lhe apetecia enterrar-se na cama para nunca mais sair. Nos últimos meses intensificou-se esta relação, a barriga de Madalena parece um balão, já pode sentir-se o bebé pontapeando a vida e Mariana costuma conversar com ele e fazer planos para a sua chegada. Madalena tem sentido algumas dificuldades, mas tem conseguido trabalhar e Kyle deixara-lhe algum dinheiro que, entretanto, se está acabando. Vive entre o entusiasmo de receber neste mundo a mais preciosa herança que o seu amado irlandês lhe poderia ter deixado e as dificuldades que se preveem. Cuidar de duas crianças não é o mesmo que cuidar de uma e o início da vida de um ser humano requer muita atenção, muita energia e muitos recursos. Recursos que Madalena não tem. Jacob vai nascer na Primavera de mil novecentos e noventa e cinco e os anos que se avizinham anunciam-se difíceis.

Não foi de repente. É sempre assim. Um problema pode surgir de repente. Uma fase negra na nossa vida não. Um aviso aqui, um sinal dias depois, uma dificuldade mais à frente e, quando olhamos à nossa volta, estamos imersos numa teia de aborrecimentos que nos prende à materialidade da existência. Há mesmo vidas que se enredam neste processo e se perdem para todo o sempre. Não será o caso de Madalena. Ainda assim, quando Albertina lhe bateu à porta num dia de semana, noite tardia, Madalena deveria ter suspeitado do que a esperava. A avó trazia cara de caso, um ar preocupado e sério, e quando perguntou o que perguntou estava genuinamente preocupada e quando Madalena respondeu o que respondeu estava a ser genuinamente verdadeira, perdoe o leitor a redundância se conseguir, resulta a mesma de ainda caber neste nosso retorcido pensamento a ideia de genuína falsidade.
-Olá, filha, como estás?
-Bem e tu vó Bé?
-Preocupada…
-Hummm, por essa cara… muito preocupada… que se passa vó Bé?
-Ora, que se passa… diz-me tu!
-Está tudo bem…
-Madalena, querida, vim aqui para te fazer uma pergunta…
-Então faz, vó…
-Já pensaste como é que vais criar essa criança que trazes na barriga e mais essa outra que, a bem dizer, te deixaram na soleira da porta? Como vais fazer, Madalena?
-Ora, vó Bé, um dia de cada vez. Vou criá-los um dia de cada vez. Enquanto houver para mim, haverá para eles…
-Mas é isso mesmo, Madalena, como é que haverá para ti?
-Vou voltar a trabalhar mais…
-Sim, meu amor e a atenção que as crianças precisam…
-Terão toda a que eu conseguir dar-lhes e essa, muita ou pouca, terá de chegar.
-Tu não vês os problemas, Madalena?
-Os que vejo, vó, preparo-me para eles, os que não vejo é porque não merecem a minha atenção, está descansada que, se merecessem, vinham ter comigo. Um problema não nos poupa, vó. Se nos poupa, não é um problema, é um erro de julgamento nosso.
-Tu assustas-me, filha…
-Pois, mas olha que tudo o que sou, foste tu que me ensinaste…
-E julgas que essa ideia não me atormenta… não sei se encorajar-te com o Kyle foi uma boa ideia…
-Para! Para já com isso! O Kyle aconteceria na minha vida com ou sem o teu consentimento, é e será sempre o homem da minha vida.
-Tu és tão nova, filha, ainda tanta coisa te vai acontecer.
-Nada do que vier a acontecer-me apagará o que já aconteceu… vó… não te arrependas tu daquilo que para mim foram os melhores anos da minha vida vivida e a viver…
-Pois… mesmo assim, os problemas estão aí… estou preocupada…
-Com o quê?
-Precisas de um pai para essa criança.
-Albertina, que se passa contigo? Esta criança tem o melhor pai que alguém poderia desejar. Não o conhecerá em vida, mas eu me encarregarei de que o pai viva em cada respiração do filho…
-Não é isso, Madalena, é a questão da paternidade. Tens de registar a criança quando nascer e dar-lhe um nome.
-Dou-lhe o meu.
-Não podes, filha, tens de indicar um pai…
-Hã… indico o Kyle.
-Não podes, filha, por mais injusto que te pareça, essa criança tem de ter um pai vivo… o teu filho precisa ser adotado para ser registado…
-Que estupidez, as leis dos homens são estúpidas, os homens são estúpidos… tinhas razão quando aqui entraste, havia um problema, mas repara como eu tinha razão também, por problema ser, encontrou caminho até mim… e se bem te conheço... esse ar preocupado… não é por causa do problema, pois não?
-Como assim, filha?
-Tu tens uma solução, não tens vó Bé? E temes que possa não aceitá-la…
-Eu conheço-o. É um bom homem. Trabalhador, respeitado e, tanto quanto sei, respeitador, é português, aceita mesmo acolher-te juntamente com as crianças…
-E o que quer ele em troca?
-Nada…
-Então, agora é a tua vez de ser ingénua? Ninguém faz nada por nada…
-Ele enviuvou… está um pouco perdido… se trouxeres a casa cuidada e lhe tratares da roupa…
-Mas ele quer uma empregada ou uma segunda mulher? É que lá tratar-lhe da casa e da roupa ainda é como o outro, mais do que isso…
-Não sejas tonta… é só mesmo isso…
-Posso conhecê-lo, falar com ele, perceber o que quer…
-É que, além do nome para a criança, ele pode dar-te algum conforto, filha, não terias de pagar renda, a água, a luz…
-Veremos.

E viu. E gostou do que viu. Um homem mais novo do que a avó, pacato, austero, de poucas falas e trato delicado. Estava há muito na Suíça. Tinha vindo como servente, passara a pedreiro e há já uns anos tinha uma pequena empresa cujo propósito único e único trabalho era produzir caixilhos de alumínio para janelas. Não trabalhava em portas, não colocava vidros nas janelas, não punha as colas, de manhã à noite, quatro pessoas selecionavam os perfis, traçavam as medidas, levavam à serra, aplicavam as esquadrias e montavam os caixilhos e depois duas pessoas e uma carrinha de caixa aberta procediam às entregas. A sua companheira de sempre, porteira há vinte e cinco anos, desde que haviam chegado à terra do frio e da neve, fora assassinada num assalto ao prédio de que cuidava. Moravam lá os dois, como era normal. Foram atados a duas cadeiras, de costas um para o outro, e foram agredidos. Ele sobreviveu. Ela sucumbiu. Teve direito a uma foto pequenina no Correio da Manhã com meia dúzia de linhas imprecisas e um título enorme na página 9. O homem ficara desesperado, desleixou o negócio e esteve quase para desistir desta vida. A pouco e pouco foi acordando para o quotidiano, mas nunca lhe saiu a tristeza do peito, nunca mais viu o sol, mesmo nos dias em que parecia brilhar. Se brilhava, era para os outros. Aceitou dar o nome ao filho da jovem viúva. Albertina explicou-lhe que a menina não tivera nenhum azar, mormente, o da desonra. Fora mesmo casada. Muito nova se tomara de amores por um estrangeiro doente. Viveram bem, mas a doença consumira-o e deixou-a com uma filha emprestada nos braços e um filho do defunto no ventre. A mais velhinha era, de facto, sobrinha. Uma sobrinha que ela criara desde as duas ou três semanas de idade como se de uma filha se tratasse, aliás, a pequenina chama-lhe mamã. É trabalhadora, a pequena, e pode ajudá-lo com a lida da casa. Nada mais, bem entendido. E, para bom entendedor, "nada mais" bastou como explicação dos limites todos. Bastou durante algum tempo. Seis meses. Depois, a ele apeteceu-lhe mais que nada era muito pouco. A verdade é que, assim que viu Madalena entrar-lhe pela porta dentro com os olhos cheios de vida azul e os cabelos louros esvoaçando e prendendo-se-lhe ao canto da boca, o homem sobressaltou-se. No seu peito houve um pequenino estrondo como se, estando longe do Japão, tivesse ouvido da bomba atómica um rumor longínquo e abafado. Aguardou. Sossegou-se. Recolheu-se ao seu canto e aos limites da sua promessa: "nada mais". Nada mais seria.

Em maio, Jacob apresentou-se ao mundo. Poderá Madalena esquecer muita coisa, mas nunca o inigualável momento de parir o seu filho. A dor, o corpo a rasgar-se por dentro, a sensação de se perder o controlo da nossa vida para se trazer outra ao mundo. Quando a criança chorou, a mãe chorou com ela e pronunciava, Já está, seu irlandês teimoso, já cá está o nosso filho, podias ter esperado mais este pouco que seria tanto. Que diz a menina? Perguntou a enfermeira. Rezo. Faz muito bem. Tem aqui um belo rapaz, mas agora vamos levá-lo connosco. Passa-se alguma coisa? Não, rotinas. Passava, mas isso são histórias de outro rosário. Lá iremos. Nunca se conhecerão completamente as consequências da maternidade, contudo, com pouca margem de erro se pode dizer que a Madalena mudou-lhe por completo a perspetiva que tinha da vida, da morte, da existência, da dedicação e a própria noção que tinha de si mesma antes de ser mãe se alterou radicalmente. As crianças estavam a maior parte do tempo com ela e o tempo que restava ficavam com Albertina que não morava longe. Madalena trabalhava muito, mas as dificuldades sérias surgiram seis meses mais tarde quando o generoso pai adotivo de Jacob decidiu que "nada mais" era muito pouco. Tomou-se de amores por Madalena. Fez-lhe propostas diversas, tentou persuadi-la a uma relação mais séria, mais íntima, e vivia entre a doçura das flores e dos presentes que lhe oferecia e a raiva de não conseguir perceber porque lhe dizia ela que não. E, contudo, a razão era simples. Não o amava. E, sobretudo, o idílio da vida com Kyle estava ainda muito próximo. A sua tarefa mais imediata, a mais urgente, a que lhe consumia as atenções e as energias todas, era criar aquelas duas inocentes almas. E no dia em que ele, insistindo, pareceu querer cobrar o facto de ter dado um nome de pai à criança, assim que lhe aflorou aos lábios o argumento de estar a dar-lhe guarida, ela sentiu-se presa e reagiu como sempre reagia a essa condição, libertou-se. Numa tarde em que chegou do trabalho e procurou por ela, o homem que emprestou o apelido a Jacob não encontrou nada. Nem Madalena, nem Mariana, nem Jacob, nem as roupas deles, nem as coisas… nada. E nada fora tudo o que lhe sobrara. Acontece muito a quem quer tudo.

Madalena não disse nada a Albertina. Porque era uma decisão só sua, porque não queria ouvir a avó pedir-lhe para pensar duas vezes e, sobretudo, porque era previsível que o homem que emprestou o apelido a Jacob entrasse em contacto com Albertina, eventualmente, julgasse que teria alguma coisa a ver com a decisão de Madalena. Deixá-la na ignorância protegia-a desses julgamentos. Por outro lado, a decisão era sua, as consequências teriam de ser por si suportadas. Talvez fosse orgulho, no seu íntimo sabia que também era orgulho, mas era um orgulho de sobrevivência e o facto é que o homem que emprestou o apelido a Jacob foi ter com Albertina e perguntou-lhe onde estava Madalena e esta reagiu dizendo que deveria estar com ele, o que se passava, e ele lá disse que não estava e Albertina lembrou-se de ir ao anterior apartamento e é verdade que Madalena estivera lá, acontece que o andar está já ocupado e mesmo que não estivesse, a renda havia subido e Madalena confessara não poder-lhe chegar. Saíram de lá os dois com a as mãos vazias e a preocupação do peito espelhada no olhar. Madalena é um espírito livre, comentou Albertina, tentar retê-la, é perdê-la para sempre.

Percebeu finalmente o que eram responsabilidades, percebeu finalmente o que era lutar combatendo as dificuldades sem poder vacilar e, sobretudo, mostrando às crianças que a vida é esperança. Sorriu sempre. Brincou sempre com eles. Viveram de forma magra e austera. Nunca tiveram fome. As crianças. Por vezes, ao final do dia, Madalena preparava-lhes a refeição e comia um tomate. Refogava o tomate em sal e comia-o com pão. Era o que podia. Depois deitava-os, pedia a Mariana que olhasse pelo mano, lhe mudasse a fralda que ela quando chegasse haveria de lavar a suja. Nesses dois anos, Madalena sobreviveu com pouco mais do que duas mudas de roupa. Tinha um trabalho ao longo do dia. Voltara ao pub, à noite, servindo às mesas, e aceitava trabalhos de contabilidade para fazer. Eram sobretudo emigrantes que lhe confiavam os sinais de mais e de menos e os impressos e seguiam à risca os seus conselhos de como orientar a vida e os negócios, onde gastar, onde não gastar, onde estava fugindo o dinheiro, de onde estava chegando. No fim de um dia de trabalho, tinha a hora de jantar com as crianças e depois disso o pub e depois disso a lida da casa e as refeições do dia seguinte e aos fins de semana as limpezas e os trabalhos de contabilidade e ao sábado à tarde corriam ao parque e respiravam ar sem teto, corriam, mostravam o mundo a Jacob apontando-lhe as coisas e dizendo-lhe os seus nomes. Passou fome, sim. Muita dela por orgulho. Acontece que o orgulho é parte da massa com que se fabrica uma espinha dorsal íntegra e erguida. Muitas vezes pensou no homem que emprestou o apelido a Jacob, em como seria fácil pedir-lhe ajuda, ao menos uma refeição de jeito, mas isso seria a negação de si própria, seria abdicar de si e nunca mais confiar-se nada. Muitas vezes pensou em socorrer-se de Albertina, pedir-lhe dinheiro emprestado, mas de novo a assaltava a urgência de sobreviver por si, de se bastar. E se não houvesse Albertina? E se não conhecesse o homem que emprestou o apelido a Jacob? Preferia deitar-se com fome do que deitar-se com a vida hipotecada. Por vezes comia no pub. Às escondidas. Restos. Pão, sobretudo. Saciava-se com o que os outros desperdiçavam. Nesses dias abençoou o desperdício alheio. Fazia as contas dos outros e as suas. A renda da casa, a água, a luz, o gás, as mercearias, os detergentes, o dinheiro dos transportes públicos, da farmácia, o dinheiro para as necessidades das crianças, e adiava as suas. E, sempre que conseguiu, leu. Deu graças aos homens pelas bibliotecas públicas e, às vezes, ao sábado à noite ou mesmo ao domingo à tarde, quando as crianças tombavam no sono, ela mergulhava nos fantásticos mundos que não podia viver, mas que não se dispensava de ler. Têm esse poder, os livros, permitem-nos viver mais do que uma vida ao mesmo tempo.

Ao cabo de dois anos, corria o ano de mil novecentos e noventa e sete, Madalena tinha interiorizado este ritmo de sacrifícios, esta austeridade forçada, as passadas limitadas do dia a dia e, contudo, não se sentia oprimida. Pelo contrário. Estava a conseguir. Jacob tinha dois anos. Era um menino meigo, com um olhar azul e infinito de ternura. Mariana era mais do que filha. Era uma amiga cúmplice do quotidiano, das opções no supermercado, dos truques de poupança, da alegria encontrada nas coisas pequeninas. Foi então que conheceu, quase por acidente, Mário Só. Seria seu segundo e último marido e uma das mais fugazes relações que viria a ter em toda a sua vida. Mas foi também um ponto final nas dúvidas. Mário Só seria breve, mas absolutamente fundamental na aprendizagem que estava fazendo acerca das pessoas, absolutamente fulcral na forma como se estava formando o seu caráter. Mário Só seria o fechamento do processo de crescimento de Madalena. A definitiva passagem de menina a mulher. Teria de morrer com ele para ressuscitar depois dele. Teria de iludir-se e desiludir-se. E só depois estaria pronta para todas as coisas que ainda lhe faltava viver. Contaremos essa morte e essa ressurreição que anda enganado quem julga que é exclusivo de Cristo, tal fenómeno. A vida tem pedras arremessadas para todos nós, e tem para todos nós alguém que se curva e nos lava as feridas. A vida tem uma Cruz para todos nós e para todos nós tem alguém que nos espera quando nos descem do madeiro. Entre o momento de soçobrar e o de reerguer há um átomo de tempo que só no peito de cada um se mede e se encontra. Chama-se Paixão.

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